A primeira vez que me ocorreu a hipótese de falência do Estado foi, talvez, há uns vinte anos, quando assisti à construção daquele monstro arquitectónico e financeiro que é a sede da Caixa-Geral de Depósitos, no Campo Pequeno. Num texto escrito na altura, perguntava-me se o país seria assim tão rico para que o banco do Estado pudesse construir o que era orgulhosamente apresentado como "a maior sede bancária da Europa". De então para cá, não me lembro que tenhamos vivido um único ano de equilíbrio (já nem digo superavit) nas contas do Estado. Só no tempo do euro, vi passar pelas Finanças Pina Moura, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix e outros mais: a todos vi ou desleixo para com os limites do défice fixados aquando da adesão ao euro ou manobras contabilísticas destinadas a consegui-lo artificialmente - antecipação de receitas a fechar o ano, deferimento de despesas, captação de fundos de pensões que estavam fora da Segurança Social (como o Governo acaba de fazer com o fundo de pensões da PT, mais uma vez chutando para as gerações seguintes a factura de um dinheiro agora gasto).
A mim, que não sou economista, escapou-me sempre a compreensão de como poderíamos continuar eternamente a gastar mais do que produzíamos e a endividar-nos ano após ano. Mas, curiosamente, ainda nesta quarta-feira, vendo a plateia de notáveis economistas reunida por Pedro Passos Coelho para se aconselhar neste momento, não consegui ver mais do que um ou dois que, a não ser recentemente, tenham, ao longo dos anos, alertado para o caminho para o abismo que estávamos a traçar.
Quando agora todos concordam em responsabilizar a gestão recente de José Sócrates e Teixeira dos Santos pela situação-limite a que chegámos, convém dizer que o mal profundo vem de muito antes. Vem do cavaquismo mãos largas, vem do PREC (quando até lavandarias se nacionalizaram!), vem do Estado Novo e da doutrina salazarista do Estado que tudo organizava, por tudo respondia e a todos protegia. Isso teve duas consequências maiores, que são a raiz dos nossos males: o descontrolo financeiro de um Estado incapaz de satisfazer crescentes obrigações e responsabilidades assumidas, e a criação de uma cultura de facilitismo e permanente reivindicação, onde tudo é devido pelo Estado e nada decorre do mérito, esforço, iniciativa e risco próprios. É por isso que a uma crise financeira juntamos uma crise económica, é por isso que a nossa economia sofre do mal endémico de falta de investimento, produtividade e competitividade. E é por isso, não apenas por especulação, que os mercados financeiros não acreditam na nossa capacidade de a médio prazo conseguirmos crescer o suficiente para começar a reduzir o défice das contas públicas.
Porém, isso não desculpa José Sócrates. No espectáculo quase indecoroso que foi o debate parlamentar de quinta-feira (excepção: Francisco Louçã, o único preparado e assertivo), José Sócrates disse que "este era o momento de agir" e que a coragem e a credibilidade política conseguem-se fazendo aquilo que é necessário em cada momento. Mas, num aparte distraído, o mesmo José Sócrates deixou escapar que os juros agiotas que nos estão a exigir para financiar a dívida pública chegaram a este montante porque o Governo não tomou antes as medidas que agora anunciou. Pois, essa é a questão: o momento de agir a sério foi há um ano e meio e o Governo não o fez porque tinha eleições que não queria perder. Sócrates e Teixeira dos Santos não conseguem explicar como, em ano eleitoral, aumentaram 4% os funcionários públicos quando todo o sector privado já congelava salários; porque esconderam um défice que já sabiam, no final de 2009, que ia ser 50% superior ao que tinham orçamentado; por que foram espetados 3000 milhões no BPN, não para defender todo o sistema bancário, mas para acorrer a um caso de polícia; porque aumentaram as prestações sociais e despesas correntes quando já sabiam que precisavam de descer o défice para 7,4 este ano; porque não começaram logo a ter mão no sector empresarial do Estado e a fazerem então o que agora se propõem fazer: reduzir organismos públicos, pessoal e despesas dos mesmos; porque foram a correr oferecer 760 milhões a Alberto João Jardim, por danos que ele não teve, para lhe garantir novo mandato e para caucionar uma gestão financeira que é um insulto continuado a todos os portugueses (em troca apenas daquela inesquecível fotografia em que Jardim acolhe Sócrates no Funchal, de mãos postas, com se rezasse à Virgem de Fátima); ou por que razão, contra toda a evidência e bom-senso, mantiveram até ao insustentável a aposta nas barragens, nos TGV, nos aeroportos e nas pontes. Se a ideia era suster o desemprego, o resultado foi o inverso: o serviço da dívida pública e o aumento dos impostos a que lançaram mão para a financiar deixaram o país sem recursos para investir e criar emprego. Se a ideia era manter o optimismo em alta, ninguém os levou a sério, apenas concluímos que a estratégia era afundar a cabeça na areia a ver se tudo passava, por milagre.
A estratégia de damage control do Governo falhou em toda a linha e apenas serviu para adiar, mais de um ano, aquilo que todos sabiam ser urgente e inadiável. Nunca quiseram escutar as vozes de dentro e só reagiram, in articulum mortis, quando a OCDE, a Comissão Europeia e a srª Merkel lhes disseram que o fado tinha acabado. É extraordinário que Sócrates e Teixeira dos Santos se consigam desculpar ainda com a crise internacional ou com os submarinos - que, pelos vistos, não sabiam que eram para pagar (apesar de declarados tão necessários pelo ministro da defesa, ainda há quinze dias). Desculpem, isto não são maneiras de governar um país! E não é também a falta de atitude politicamente séria de quase toda a oposição, quase todo o tempo, que justifica a mentira em que vivemos nos últimos tempos e que o Governo escondeu e alimentou.
Tomem, pois, nota da data: 29 de Setembro de 2010. O dia em que foi declarada a falência oficiosa do Estado Português, tal como nos habituámos a vê-lo. Não quer dizer que ele esteja definitivamente morto e que não renasça na próxima oportunidade, na próxima eleição. Mas, pelo menos, ficámos todos a saber que, segundo as melhores perspectivas médicas, o doente não tem cura: a doença é terminal.
Porém, há males que podem vir por bem. Conseguir que o Estado deixe de gastar o que não tem e que cesse o permanente saque fiscal sobre os que trabalham e investem e podem criar riqueza, é a oportunidade que nos é dada. Eu sei que, para isso, muita coisa, muita coisa mesmo, terá de mudar na atitude geral em que nos instalámos. Sei que alguma 'rua' (a que vive do Estado) não aceitará que nada de essencial mude, mas outra 'rua' entenderá e sabe que esse é o caminho. Eu gostei de ouvir o Jerónimo de Sousa dizer que o Governo tinha cedido à chantagem dos mercados internacionais: pois cedeu, mas como se conseguiria que eles nos emprestassem mais dinheiro para pagar aos funcionários públicos, já no ano que vem? Gostei de o ouvir dizer que a alternativa era aumentar a produção e a riqueza: também acho, mas, excluindo a hipótese de ele querer aumentar os horários de trabalho, e excluindo o aumento da produção dos nossos poços de petróleo e das nossas minas de ouro, não vejo como é que isso se consegue fazer rapidamente, num país onde toda a riqueza produzida é ultrapassada sistematicamente pelos gastos do Estado.
Meus senhores: acabou. Quem tem soluções salvadoras, novas e, se possível, sérias, que as apresente agora. Mas, mais do mesmo, não dá. Ninguém pode acusar este e anteriores governos de não terem tentado até ao limite viver a crédito, mas já não dá mais: fecharam-nos a torneira.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Certidão de Óbito
Este é o título do artigo de Miguel Sousa Tavares publicado no passado sábado no Expresso. Tive que esperar uns dias para que saísse no site, para não ter de fazer copiasinha.
Chamo a atenção para as partes que sublinhei com uma cor diferente.
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