
Saramago depois de ter feito afirmações, mais do que lamentáveis, são sim ofensivas, acerca de Deus e da Bíblia (fazendo uma certa confusão entre o Deus da Bíblia e o Deus dos Católicos), voltou à carga: emendando a mão mas dando logo a seguir outra facada, deixou mais uma farpa - "Deus não é de fiar". Rematou com várias observações, entre elas esta pergunta: Porque é que Deus não aceitou a oferta de Caim? Desta pergunta Saramago retira um Deus mau que descriminou o pobre Caim, mas esta não é a verdade, a verdade está encerrada no próprio texto bíblico que Saramago lê como quer - tem e deve ter liberdade para isso - dali forma o seu dogma do "Deus mau" e depois, como o pior dos fundamentalistas, procura impor essa sua convicção pela força de um racionalismo humanista, que procura descredibilizar e imbecilizar quem o coloca em questão.
Leia-se a este propósito as seguintes palavras do jornalista Miguel Gaspar, publicadas hoje na última página do Público: "Li as palavras sobre a maldade de Deus como expressão da intolerância que o caracteriza (o autor aqui fala de Saramago). E é verdadeira essa intolerância: Saramago eleva a sua leitura da Bíblia à dimensão de um dogma. Para ele, a ideia do 'Deus rancoroso, vingativo e má pessoa' é uma verdade 'inquestionável'. 'Eu leio apenas aquilo que lá está', escreve Saramago, como se Saramago não soubesse que a Bíblia, como todos os textos, é aberto à pluralidade de leituras. Viaja-se alegremente de Deus a Marx sem perceber que o mais importante é olhar para o mundo sem um sentido único."
Mas para percebermos melhor que Saramago apenas está a apresentar um dogmático, e por isso religioso, relativo e muito pouco credível ponto de vista, é interessante observar as palavras que se seguem, de José Manuel Fernandes, o ainda director do Público, presentes do editorial de hoje: "E como, por cá, ninguém reage com fatwas, Saramago pode tirar partido de uma liberdade de expressão que ele, curiosamente, não deu a quem trabalhou sob as suas ordens no Diário de Notícias no tempo da Revolução." Saramago demonstrou não ser um homem da liberdade de expressão, mas sim um homem da liberdade de expressão do seu pensamento, ou seja, liberdade só a de exprimir o pensamento que com o dele coincide. Um homem dogmático, intolerante e preconceituoso, que com o passar dos anos não amadureceu, apenas requintou os seus tiques autoritários, dourando-os sob uma imagem de intelectualidade e genialidade literária.
Mas afinal Porque é que Deus não aceitou a oferta de Caim? Esta pergunta é interessante e não posso de deixar de ir ao seu encontro, até porque acho que muitas pessoas que afirmam acreditar na Bíblia não devem saber responder à mesma.
Deixo aqui o texto bíblico:
"E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu, e teve a Caim, e disse: Alcancei do SENHOR um varão. E teve mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu, ao cabo de dias, que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o seu semblante. E o SENHOR disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti? E, se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel e o matou. E disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e errante serás na terra. Então, disse Caim ao SENHOR: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e errante na terra, e será que todo aquele que me achar me matará. O SENHOR, porém, disse-lhe: Portanto, qualquer que matar a Caim sete vezes será castigado. E pôs o SENHOR um sinal em Caim, para que não o ferisse qualquer que o achasse."
Como podemos ler neste texto foram feitas duas ofertas a Deus: uma de animais, por Abel, que Deus aceitou, outra de vegetais, por Caim, que Deus não aceitou. Caim ficou desiludido, descaiu o seu semblante, quando Deus não aceitou a sua oferta. Claro que como muitas pessoas fazem, Caim fulanizou a questão, mas a frase seguinte, a pergunta seguinte, encerra todo o cerne da questão: "Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti?". Deus disse a Caim que bastava ele oferecer correctamente, oferecer animais, fazer como estava estabelecido, haveria também aceitação para ele. Caim só precisava trocar verduras por animais e realizar a sua oferta. Assim estava estabelecido simbolicamente desde o momento em que Deus com peles de animais cobriu a nudez de Adão e Eva, era com derramamento de sangue que o homem cobria a sua nudez para se aproximar de Deus. Caim sabia disso, assim tinha sido ensinado, educado. Assim vira os seus pais fazer centenas de vezes: mas quis inovar, quis fazer diferente, quis ser desobediente, quis ser rebelde. Quis fazer à sua maneira e foi recusado: Deus recusou a oferta de Caim porque ele foi desobediente e rebelde, quis ser mais esperto do que os outros e fazer as coisas à sua maneira. Deus ainda lhe disse, "faz tudo correctamente, arrepende-te, arrepia caminho e a nossa relação ficará restabelecida, a justiça será reposta". Mas a reacção de Caim foi alimentar a rebelião, dela produzir a revolta e da revolta a reacção. Reagiu então contra o seu irmão, porque ele fez tudo bem feito, não foi rebelde, não o acompanhou, armou-se em menino lindo e tinha ficado bem visto, enquanto ele agora era o mau. Caim tinha dois caminhos, dois intemporais caminhos, os mesmos que hoje se nos deparam em cada dia: o do arrependimento e correcção, ou o da rebelião e revolta; o do "bem fazer", ou o do "pecado jaz à porta". Caim tinha o caminho de oferecer os animais adquiridos com os vegetais fruto do seu trabalho, ou rebelar-se matando o seu irmão. Caim escolheu, não foi Deus quem escolheu o caminho, não foi Deus quem induziu Caim, foi de Caim, foi do homem, foi dele a escolha que fez: escolheu o pior caminho, escolheu matar o irmão, deu lugar à revolta, ao rancor, à inveja e matou, derramou sangue, não o de um animal, mas o sangue do seu irmão. Não é Deus que é mau e rancoroso, como diz Saramago, essa é a descrição do homem, de Caim e do homem, de cada um.
Deus não é mau, rancoroso, vingativo e má pessoa, Caim sim, esse é mau rancoroso, vingativo e má pessoa, por isso escolhe o homicídio à reconciliação, escolhe a morte à vida, escolhe estar sem Deus a estar com Deus. Se daqui julgamentos de valor podemos fazer, que tipo de homem será Saramago?